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Nota Técnica 23 (CLISP)/2024

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02/09/2024

DE JF 3. REGIÃO - ADM, n. 167, p. 28-37. Data de disponibilização:04/09/2024. Data de publicação: 1º dia útil seguinte ao da disponibilização no Diário eletrônico (Lei 11419/2006)

Implementação de mecanismos específicos para o tratamento de litigância

predatória na Seção Judiciária de São Paulo

Nota Técnica NI CLISP 23/2024 Assunto: Teleperícias ou Perícias Virtuais Relatores: Fernando Caldas Bivar Neto, Gabriel Herrera, Leticia Mendes Gonçalves Hillen Revisoras: Fernanda Souza Hutzler, Eliana Rita Maia Di Pierro I – Introdução A presente Nota Técnica, fundamentada na... Ver mais
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Nota Técnica NI CLISP 23/2024

 

Assunto: Teleperícias ou Perícias Virtuais

Relatores: Fernando Caldas Bivar Neto, Gabriel Herrera, Leticia Mendes Gonçalves Hillen

Revisoras: Fernanda Souza Hutzler, Eliana Rita Maia Di Pierro

 

 

I – Introdução

 

A presente Nota Técnica, fundamentada na Resolução nº 499/2018 do Conselho da Justiça Federal na Portaria nº 33/2018 da Diretoria do Foro da Justiça Federal de São Paulo, tem por finalidade fornecer subsídios para o cumprimento da Recomendação nº 10386095 da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 3ª Região, de modo a viabilizar a realização de teleperícia ou perícia virtual por meio de telemedicina em ações judiciais no cenário pós-pandemia, independentemente da presença de circunstâncias impeditivas da perícia presencial.

 

Embora evidenciada certa resistência na realização da prova técnica mediante uso de meios eletrônicos, verificou-se a existência de respaldo normativo suficiente para emprestar validade às teleperícias, com o potencial de atingir os seguintes resultados: i) economia de recursos, agilizando o processamento das ações e reduzindo a incidência de encargos decorrentes de eventual condenação; ii) possível incremento da produtividade, atendendo-se a uma demanda reprimida, especialmente em Subseções localizadas no interior; e iii) incremento na celeridade da resposta estatal ao conflito de interesses apresentado, efetivando o direito de acesso à justiça e garantindo economia de tempo e recursos financeiros.

 

Diante dessas constatações, elaborou-se a presente Nota Técnica para, além de reafirmar e disseminar as conclusões quanto à regularidade jurídica da perícia virtual, avaliar a possibilidade de sua realização no âmbito da Justiça Federal da 3ª Região, pelos fundamentos que seguem abaixo.

 

 

II – Breve panorama do histórico do tratamento conferido à teleperícia pelo CFM no contexto da pandemia do covid-19

 

A decretação do isolamento social e a total suspensão das atividades presenciais, inclusive do expediente forense, diante da incerteza do quadro sanitário que se avizinhava, gerou a necessidade de adoção de estratégia para se driblar o problema da realização das perícias judiciais no início da pandemia do covid-19.

 

Nesse contexto foi que o Centro Local de Inteligência da Justiça Federal de São Paulo editou Nota Técnica NI CLISP nº 12,[1] na qual se defendeu a adoção da teleperícia como solução para a realização de perícias médicas judiciais nas ações que envolvessem benefícios por incapacidade e benefícios de prestação continuada, como forma de garantir o devido trâmite durante a crise sanitária instaurada pelo covid-19, com encaminhamento de comunicação ao Conselho Federal de Medicina para a regulamentação da atuação no período excepcional.

 

Todavia, uma vez encaminhada para análise pelo Conselho Profissional, dada a relevância do tema, a Nota Técnica NI CLISP nº 12 foi repudiada pelo Conselho Federal de Medicina por intermédio do PARECER CFM Nº 3/2020.

 

Em 08/04/2020, o CFM editou o PARECER CFM Nº 03/2020, como resposta ao processo-consulta CFM nº 7/2020, por meio do qual concluiu que o médico perito judicial que utiliza recurso tecnológico sem realizar o exame direto no periciando afronta o Código de Ética Médica e demais normativas emanadas do CFM.

 

Essa conclusão foi reforçada pelo Conselho em 09/07/2020, no PARECER CFM Nº 10/2020, emanado como resposta ao processo-consulta CFM nº 16/2020, após provocação realizada pela Associação Brasileira de Medicina Legal e Perícia Médica sobre o procedimento que o médico deveria adotar quando intimado judicialmente a comparecer em audiência para realizar prova técnica simplificada.

 

O Parecer CFM nº 03/2020 baseou-se no disposto no artigo 58 da Resolução CFM nº 2056/2013, que disciplina o roteiro a ser seguido pelo médico perito, para concluir pela impossibilidade de realização de perícia médica sem exame físico presencial, de modo que a incapacidade laborativa, sequela ou déficit funcional demandaria necessariamente a avaliação de exame médico-pericial, o que se estenderia à perícia psiquiátrica.

 

O Parecer CFM nº 10/2020, por sua vez, invocou os artigos 92 e 98 do Código de Ética Médica[2] – que exigem o exame "pessoal" para a assinatura de laudo pericial – para reforçar a conclusão de que as questões de avaliação da capacidade, dano pessoal, aptidão física ou mental, nexo causal, definição de diagnóstico ou prognóstico necessitam do exame médico presencial.

 

Os Pareceres foram impugnados pelo Ministério Público Federal por meio da ação civil pública nº 5039701-70.2020.4.04.7100/RS distribuída em 16/07/2020 na 20ª Vara Federal de Porto Alegre, com medida liminar deferida.

 

A sentença julgou procedentes os pedidos formulados para condenar o CFM a abster-se de adotar quaisquer medidas contrárias, notadamente de natureza disciplinar, à realização de prova técnica simplificada, perícia virtual/teleperícia ou perícia indireta em processos judiciais que tenham por objeto benefícios previdenciários e assistenciais, bem como declarou a nulidade dos Pareceres CFM 3/2020 e 10/2020.

 

A sentença foi confirmada, em julgamento de apelação, pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em 16/11/2021, e o v. acórdão transitou em julgado diante da não admissão do recurso especial interposto pelo CFM.

 

Ao lado de outros fundamentos decisórios nela expostos, com análise de sua compatibilidade à legislação contemporânea, a sentença considerou que não há infração ética na conduta do médico que realiza teleperícia, por não subsunção à conduta prevista no artigo 92 do Código de Ética Médica, pois o advérbio "pessoalmente" qualifica a ação do perito para garantir que o profissional que realizou a perícia assine o laudo, sem significar, portanto, obrigatório exame direto (pessoal) do objeto da perícia.

 

 

III – O tratamento normativo da teleperícia no pós-pandemia

 

Após toda a controvérsia que vigorou na época da pandemia, que, na prática, resultou em coibição da realização de teleperícia pelos médicos e, consequentemente, nos Juizados Especiais Federais, em uma longa fila de perícias e até mesmo em atraso de julgamentos, com prejuízo não apenas ao segurado, como também ao Estado, o CFM editou novos atos normativos para a regulamentação do exercício da medicina por instrumentos tecnológicos, como a Resolução CFM nº 2.314/2022.

 

A Resolução CFM nº 2.314/22, ao reconhecer as consequências positivas da telemedicina observadas durante o período de suspensão dos trabalhos presenciais, definiu e regulamentou a telemedicina, assim considerada aquela em tempo real on-line ou off-line e por multimeios em tecnologia. O artigo 5º da Resolução dispôs que a telemedicina pode ser exercida em vários atendimentos de teleatendimentos médicos, como teleconsulta, telecirurgia, teletriagem, teleconsultoria, entre outras modalidades.[3]

 

O artigo 6º da Resolução, ao dispor sobre a teleconsulta, prevê que a consulta presencial é o padrão ouro de referência. A teleconsulta é, portanto, reservada a casos pontuais, e não a regra. Também dispõe que ela não é a mais indicada para acompanhamento por longo tempo. O artigo 6º, §4º garante ao médico, em todo caso, a prerrogativa de solicitar a presença do paciente para finalizar a consulta, se entender necessária a realização de exame físico completo.[4]

 

A análise minuciosa do aludido ato normativo deixa claro que o CFM reconhece, de fato, a modalidade presencial como ideal para o exercício da medicina, mas sem excluir a possibilidade da telemedicina, posta como viável do ponto de vista profissional, com o reforço de que a sua adoção não retira do médico o poder-dever de, no exercício de suas competências, avaliar se essa modalidade é ou não suficiente para o atendimento que lhe se reclama, diante do quadro clínico. Não é ela, pois, a regra.

 

A exposição de motivos da Resolução, inclusive, reconhece os diversos benefícios que a telemedicina tem gerado, por representar a introdução de logística que facilita o acesso, transfere conhecimentos e experiências entre serviços médicos de portes distintos, proporcionando racionalidade no uso dos recursos. Ressalta, ainda, que as tecnologias devem servir e melhorar o exercício profissional.

 

Todavia, o CFM editou, em seguida, a Resolução CFM nº 2.325/2022, justamente para reforçar, mais uma vez, sua contrariedade à teleperícia, ao dispor que o uso da telemedicina para realização de perícias médicas se restringe a casos específicos como de perícia indireta ou que não envolvam capacidade ou invalidez.

 

O artigo 2º da referida resolução já sintetiza a essência conservadora do ato normativo ao prescrever que o uso da telemedicina para realização de avaliações periciais é medida excepcional e restrita a situações específicas e pontuais que ela própria descreve: morte do periciando ou perícia indireta ou documental, desde que não envolva avaliação de dano pessoal, capacidade ou invalidez ou que seja de natureza médico legal.[5]

 

Segundo a Resolução CFM nº 2.325/2022, se houver questão de capacidade, dano pessoal, aptidão física ou mental, definição de diagnóstico ou prognóstico, faz-se imprescindível o exame médico presencial, ou seja, anamnese pericial, avaliação presencial e análise de exames complementares, em cumprimento ao artigo 58 da Resolução CFM nº 2.056/2013. Se o perito, uma vez instado, não fizer o exame médico presencial para assinar o laudo pericial, caracterizar-se-á infração ética por descumprimento aos artigos 92 e 98 do Código de Ética Médica.

 

Mais uma vez, portanto, o CFM reiterou seu posicionamento, já externado nos Pareceres impugnados na ação civil pública, de que a teleperícia não pode ser admitida como regra, e sim como exceção, a ser aplicada em casos extremamente excepcionais, em que não há mesmo qualquer possibilidade de proceder-se ao exame médico presencial, como no caso de morte e de perícia exclusivamente indireta (documental).

 

Na contramão do movimento recalcitrante do Conselho de Medicina, a Lei nº 14.724, de 14 de novembro de 2023, que instituiu o Programa de Enfrentamento à Fila da Previdência Social (PEFPS), introduziu, em âmbito nacional, a telemedicina na perícia médica federal e viabilizou a utilização da teleperícia no âmbito previdenciário.

 

O artigo 12 da Lei nº 14.724/2023 autorizou o Ministério da Previdência Social a adotar a teleperícia no âmbito da perícia médica federal em situações específicas, como em Municípios com difícil provimento de médicos peritos ou com tempo de espera elevado:

 

Art. 12. O Ministério da Previdência Social fica autorizado a utilizar a tecnologia de telemedicina na perícia médica federal em Municípios com difícil provimento de médicos peritos ou com tempo de espera elevado.

 

O artigo 13 da Lei alterou a Lei nº 8.213/91 para dispor que, no âmbito dos benefícios por incapacidade, o exame médico-pericial necessário à constatação da incapacidade pode ser realizado com o uso de tecnologia de telemedicina ou por análise documental, conforme situações e requisitos definidos na lei, como consta da atual redação dos artigos 42, § 1º-A, 60, § 11-A, e 101, §§ 6º a 9º, da Lei nº 8.213/91:

 

Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.

 

§ 1º-A. O exame médico-pericial previsto no § 1º deste artigo poderá ser realizado com o uso de tecnologia de telemedicina ou por análise documental conforme situações e requisitos definidos em regulamento.

 

Art. 60. O auxílio-doença será devido ao segurado empregado a contar do décimo sexto dia do afastamento da atividade, e, no caso dos demais segurados, a contar da data do início da incapacidade e enquanto ele permanecer incapaz.

 

§ 11-A. O exame médico-pericial previsto nos §§ 4º e 10 deste artigo, a cargo da Previdência Social, poderá ser realizado com o uso de tecnologia de telemedicina ou por análise documental conforme situações e requisitos definidos em regulamento.

 

Art. 101. O segurado em gozo de auxílio por incapacidade temporária, auxílio-acidente ou aposentadoria por incapacidade permanente e o pensionista inválido, cujos benefícios tenham sido concedidos judicial ou administrativamente, estão obrigados, sob pena de suspensão do benefício, a submeter-se a:

 

§ 6º As avaliações e os exames médico-periciais de que trata o inciso I do caput, inclusive na hipótese de que trata o § 5º deste artigo, poderão ser realizados com o uso de tecnologia de telemedicina ou por análise documental conforme situações e requisitos definidos em regulamento, observado o disposto nos §§ 11-A e 14 do art. 60 desta Lei e no § 12 do art. 30 da Lei nº 11.907, de 2 de fevereiro de 2009.

 

§ 8º Em caso de cancelamento de agendamento para perícia presencial, o horário vago poderá ser preenchido por perícia com o uso de tecnologia de telemedicina, antecipando atendimento previsto para data futura, obedecida a ordem da fila.

 

§ 9º No caso da antecipação de atendimento prevista no § 8º deste artigo, observar-se-á a disponibilidade do periciando para se submeter à perícia remota no horário tornado disponível.

 

O artigo 14 da Lei nº 14.724/2023, na mesma toada, estendeu a possibilidade de realização de teleperícia às perícias médicas para constatação do impedimento de longo prazo para a concessão de benefício de prestação continuada à pessoa com deficiência (artigo 40-B da Lei nº 8.742/1992):

 

Art. 40-B. Enquanto não estiver regulamentado o instrumento de avaliação de que tratam os §§ 1º e 2º do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), a concessão do benefício de prestação continuada à pessoa com deficiência ficará sujeita à avaliação do grau da deficiência e do impedimento de que trata o § 2º do art. 20 desta Lei, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas, respectivamente, pela Perícia Médica Federal e pelo serviço social do INSS, com a utilização de instrumentos desenvolvidos especificamente para esse fim.

 

[...]

 

§ 2º A avaliação médica prevista no caput deste artigo poderá ser realizada com o uso de tecnologia de telemedicina ou por análise documental conforme situações e requisitos definidos em regulamento.

 

O artigo 15, por sua vez, a autorizou para a constatação da existência e do grau da deficiência na aposentadoria especial da pessoa com deficiência, mediante inclusão do artigo 2º, § 3º ao Estatuto da Pessoa com Deficiência:

 

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

 

§ 3º O exame médico-pericial componente da avaliação biopsicossocial da deficiência de que trata o § 1º deste artigo poderá ser realizado com o uso de tecnologia de telemedicina ou por análise documental conforme situações e requisitos definidos em regulamento.

 

 

IV – A viabilidade jurídica da teleperícia no cenário pós-pandemia

 

Muito embora a crise sanitária tenha sido decisiva para sua popularização, a teleperícia ou perícia virtual continua representando meio de produção de prova pericial de interesse para o Poder Público, especialmente por contornar dificuldades outras ligadas ao distanciamento físico, como a inviabilidade de deslocamento por questões econômicas e/ou sociais e até mesmo a ausência de profissionais especializados em determinadas regiões para a realização de perícias médicas com especialistas.

 

Não por outra razão, a teleperícia foi introduzida, por intermédio da Lei nº 14.724/2023, como um mecanismo salutar para o enfrentamento à Fila da Previdência Social, a partir do que se possibilitou, ao Ministério da Previdência Social, a realização de perícias médicas federais com a utilização da telemedicina para a concessão de benefícios previdenciários e assistenciais, com a alteração significativa do cenário normativo.

 

Se antes a prática não era regulada por ato normativo algum, com o advento da Lei nº 14.724/2023, sua realização passou a ser tratada como meio idôneo para a realização de perícias médicas, com o reconhecimento implícito de que a utilização da telemedicina não prejudica a qualidade e a segurança necessária para a concessão de benefícios.

 

Mesmo que a perícia virtual não tenha sido tratada como a forma prioritária para a realização de exames médicos periciais, com seu cabimento restrito a situações específicas, a serem definidas em atos normativos concretos, a previsão do instituto em lei é, sem dúvidas, um avanço legislativo e acarreta, como consequência lógica, a revogação de todos os atos normativos infralegais que porventura lhe eram contrários.

 

Desse modo, é possível concluir que a Lei nº 14.724/2023, que previu a admissibilidade da teleperícia para a constatação de incapacidades e impedimentos de longo prazo, por si só, já revogaria todos os atos normativos anteriores com ele incompatíveis, como as Resoluções editadas pelo Conselho de Medicina no pós-pandemia.

 

Sem prejuízo desse raciocínio, a proibição realizada pelo Conselho de Medicina, por atos normativos secundários, de realização de teleperícias, já deveria ser tida como inconstitucional mesmo antes, pelo prejuízo à legalidade que lhe é inerente.

 

Conforme já exposto na Nota Técnica nº 12 do CLISP, o Código de Processo Civil, responsável por regular a matéria no campo processual, não traz qualquer obrigatoriedade de contato pessoal ou físico entre o perito e o objeto da perícia.

 

O artigo 473 do CPC traz requisitos mínimos para a validade do laudo pericial, que deve conter, entre outros elementos, a análise técnica ou científica do objeto, o que não necessariamente implica exame presencial ou físico.

 

Logo, nunca houve efetivamente previsão legal de que a perícia judicial deveria ser obrigatoriamente presencial. Inclusive, o artigo 464, § 4º, do Código de Processo Civil prevê a possibilidade de uso de recursos tecnológicos para produção de provas no processo civil.

 

Portanto, diante desse panorama normativo, não é dado ao Conselho de Medicina, a pretexto de regulamentar o exercício da profissão, criar restrição sem prévio amparo legal em atos normativos secundários. O poder regulamentar do Conselho submete-se ao princípio da legalidade estrita, e, portanto, não se admite que o exercício culmine na criação de direitos e deveres que não estão previstos na ordem jurídica.

 

Os médicos sujeitos à fiscalização do Conselho, por sua vez, estão sujeitos ao princípio da legalidade enquanto garantia e, também por isso, não são obrigados a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei, o que representa direito constitucional.

 

Daí o desenvolvimento do raciocínio de que a atuação normativa do Conselho, concretizada na Resolução CFM nº 2.325/2022, é inconstitucional, por extrapolar o poder regulamentar que lhe era inerente, com a criação de obrigações sem previsão legal, mesmo antes da introdução da teleperícia pela Lei nº 14.724/2023.

 

Não bastasse a inconstitucionalidade e até mesmo a revogação da Resolução CFM nº 2.325/2022 pela Lei nº 14.724/2023, ainda é possível se invocar a coisa julgada material formada contra o Conselho quanto à juridicidade da teleperícia.

 

A sentença proferida na ação civil pública já citada acima, que tramitou no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, foi clara ao impor ao Conselho Federal de Medicina a obrigação de não fazer, consistente em não punir os médicos pela realização de teleperícias, com a consequente declaração de nulidade dos Pareceres impugnados.

 

Conforme já definido pelo Supremo Tribunal Federal[6] ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública,[7] os efeitos subjetivos da coisa julgada formada em ação civil pública projetam-se para todos os potenciais beneficiários da decisão judicial, sem qualquer limitação territorial, desde que observado o artigo 93, II, da Lei 8.078/1990.

 

A ação civil pública proposta possui âmbito nacional e observou o disposto no artigo 93, II, da Lei 8.078/1990,[8] já que proposta no foro da capital do Rio Grande do Sul.

 

A despeito de a sentença ter declarado a nulidade dos Pareceres então existentes em seu dispositivo, o título executivo judicial coletivo reconheceu, por via oblíqua, a conformidade da teleperícia com o ordenamento jurídico enquanto forma legítima de produção da prova pericial, e, em acréscimo, impôs ao Conselho a obrigação de abster-se de punir e atuar contra os médicos que adotem a prática.

 

A coisa julgada material formada naqueles autos impede qualquer atuação, direta ou indiretamente, contrária, por parte do Conselho de Medicina, às teleperícias, ainda que por intermédio de atos normativos regulamentares do exercício profissional.

 

Não houve alteração na situação de fato e de direito apta a chancelar a reação opositora do Conselho de Medicina às teleperícias após a coisa julgada favorável ao instituto.

 

O fim da crise sanitária, por si só, não é suficiente para alterar esse panorama.

 

Nesse ponto, vale perquirir se a eficácia da coisa julgada material formada na ação coletiva seria circunstancial, ou seja, sujeita à manutenção das condições de fato subjacentes ao litígio, levando em conta que o pano de fundo era a pandemia.

 

A solução, porém, perpassa pela análise do dispositivo da sentença, que, nitidamente, não delimitou os efeitos da obrigação de não fazer imposta ao CFM naquela demanda à presença de determinada circunstância, ou seja, não condicionou sua eficácia à existência ou à persistência da crise de saúde pública que se manifestava por ocasião do ajuizamento - a pandemia do covid-19 -, embora esse tenha sido o cenário subjacente.[9]

 

A fundamentação da sentença, inclusive, se assentou na total compatibilidade da teleperícia com os preceitos que regulamentam a profissão e, em especial, na sua prestabilidade para a constatação de incapacidades e impedimentos e para a formação do convencimento de magistrados no Poder Judiciário, independentemente da presença ou não do cenário circunstancial de impossibilidade fática de realização da perícia presencial, como ocorreu durante a pandemia do covid-19.

 

Portanto, a Resolução CFM nº 2.325/2022, ao restringir, indevidamente, o alcance da teleperícia, na contramão da coisa julgada coletiva formada contra o Conselho de Medicina, representa descumprimento à obrigação reconhecida judicialmente naqueles autos, configurando uma reação indevida do Conselho ao pronunciamento do Poder Judiciário.

 

Além da questão formal exposta acima, é necessário se levar em conta também o aspecto material relacionado à possibilidade de realização das perícias médicas judiciais por meio virtual, a partir de seus benefícios e vantagens.

 

A preocupação do Conselho com a idoneidade da prova pericial para a formação do convencimento do magistrado, em notório respeito à influência da prova sobre o Poder Judiciário, é relevante e tem sua razão de ser, mas não pode ser posta como empecilho para vedar o exercício da jurisdição de forma independente.

 

A partir do momento em que se adota postura refratária à teleperícia, mesmo que o Poder Judiciário a conceba como possível, o Conselho, na realidade, desrespeita aquilo que busca prestigiar, que é justamente o livre convencimento dos magistrados, impedindo que os magistrados exerçam sua função da forma que lhe seja mais conveniente, o que pressupõe a concepção de novas formas de produção de prova.

 

Ainda no contexto da pandemia, o Conselho invocara, como argumento de reforço, a possibilidade de concessão de benefícios previdenciários sem a realização de perícias médicas como alternativa para suprimir o problema da suspensão das perícias presenciais, o que também põe em xeque a preocupação.

 

Todavia, não havia qualquer fundamento racionalmente válido para que se priorizasse a concessão de benefícios previdenciários sem qualquer juízo de precisão mínima sobre a existência da incapacidade funcional, em detrimento da possibilidade de formação de juízo de convencimento por teleperícia, como se pretendia.

 

A outra preocupação externada pelo Conselho diz respeito aos efeitos potencialmente prejudiciais da teleperícia para a sociedade e para o Poder Público, como se a prática incrementasse a possibilidade de concessão indevida de benefícios.

 

Mais uma vez, a premissa adotada pelo Conselho não se sustenta. Não há, ainda, dados ou informações que possibilitem a conclusão de que a teleperícia pode alterar o padrão de resultados de perícias, com o aumento ou diminuição de concessões de benefícios, destoando, quantitativamente, do que ocorre com perícias presenciais.

 

A impossibilidade de realização de perícias médicas virtuais, na realidade, prejudica a sociedade e o Poder Público, na medida em que nem sempre a submissão ao exame presencial é algo factível em razão de limitações financeiras e materiais, ainda mais levando em conta a realidade da Justiça Federal, cuja interiorização não é tão intensa, o que exige do segurado, por vezes, um deslocamento penoso para possibilitar o acesso à Justiça.

 

A proibição pelo Conselho da teleperícia afronta não apenas o livre exercício da jurisdição pelo Poder Judiciário, mas também a própria independência do médico, ao qual incumbe, dentro de sua competência, definir se é possível ou não a utilização de meio virtual ou se o exame presencial seria indispensável para a conclusão da perícia.

 

Não se revela adequada, também, o emprego da Resolução CFM nº 2056/2013 como fundamento para a rejeição às teleperícias, já que concebida há mais de década, quando a realidade social era significativamente diversa, sem a utilização tão intensa dos meios tecnológicos para a realização de atos da vida civil e para o exercício de direitos.

 

É digna de nota, ainda, a contradição na postura do Conselho quanto à telemedicina, já que, ao mesmo tempo em que se proíbe a telemedicina na realização de perícias, admite-a para outras espécies de atendimento tão complexos quanto a perícia judicial, especialmente para a realização de telecirurgias.

 

Realizadas essas considerações, conclui-se que a teleperícia representa uma nova forma de realização da prova pericial em um mundo cada vez mais tecnológico.

 

A perícia judicial com recursos tecnológicos, na realidade, não traz risco real de prejuízo ao Estado, à sociedade e às instituições privadas, se o próprio Estado admite sua utilização. A realização de perícia nesses moldes, inclusive, traz muitos benefícios à sociedade em todos os aspectos, ao contrário do que pressuposto pelo CFM.

 

Ao Estado, a teleperícia gera economia de recursos, já que torna mais ágil o processamento das ações, o que diminui a incidência de encargos, como correção monetária e juros, e até mesmo dispensa o fornecimento de transporte pela rede pública municipal – já sabidamente comprometida – para o deslocamento do jurisdicionado à sede da subseção, situação extremamente comum no interior. Não à toa, a Lei nº 14.742/2003 foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Chefe do Poder Executivo, com previsão expressa da admissão de utilização da telemedicina em perícias médicas em situações específicas para a concessão de benefícios.

 

Ao Poder Judiciário, propicia inúmeros ganhos, pois viabiliza aos magistrados a realização de perícia com menos dificuldades logísticas para sua designação, especialmente quando há a necessidade de nomeação de médicos especialistas, por vezes escassos em determinadas localidades, o aumento da produtividade, com a prolação de julgamentos em menor tempo, sem que daí decorra qualquer prejuízo à cognição, uma vez que remanesce ao magistrado a prerrogativa de redesignar a perícia e/ou determinar a prestação de esclarecimentos.

 

Ao jurisdicionado, possibilita maior celeridade da tramitação processual, com uma resposta mais rápida do Estado ao conflito de interesses, em consonância com o direito de acesso à justiça, e, em especialmente, a economia de tempo e de recursos financeiros, já que não necessitam deslocar-se quilômetros para viabilizar a produção da prova, uma vez que as subseções da Justiça Federal abrangem, em regra, diversas cidades, cujo deslocamento é muito custo, prejudicando até mesmo o exercício do trabalho.

 

Nesse ponto, é relevante atentar-se à realidade brasileira, cujo território nacional é vasto e marcado por distâncias geográficas significativas, de modo que os jurisdicionados que necessitam deslocar-se para a submissão a perícias judiciais são justamente os que menos têm condições para tanto, necessitando despender recursos financeiros que já são parcos e até mesmo privar-se de jornada de trabalho, com prejuízo ao próprio trabalho.

 

Realizadas essas considerações, conclui-se que não há mais qualquer justificativa para a não admissão da teleperícia enquanto meio autônomo de realização da perícia médica.

 

A previsão legal de admissão da teleperícia no âmbito da Previdência Social, a ausência de qualquer óbice legal no Código de Processo Civil e, em especial, a coisa julgada formada na ação civil pública proposta contra o Conselho Federal de Medicina são fundamentos mais que suficientes para a admissão da teleperícia como alternativa para a realização de perícias médicas, independentemente de qualquer circunstância.

 

A atuação conservadora, resistente e refratária do Conselho Federal de Medicina é, portanto, inconstitucional, ilegal e viola a coisa julgada, já que não se baseia em dados objetivos e estatísticos, não considera a nova realidade de intensa utilização de novas tecnologias para o exercício dos direitos, interfere de forma indevida no espaço de autonomia do médico perito e, também, tolhe do Poder Público e, em especial, do Poder Judiciário e dos jurisdicionados, a prerrogativa de valer-se de outras formas de produção de prova.

 

Com fundamento nisso, a conclusão é de que não subsiste impedimento de qualquer natureza - constitucional, legal ou judicial - à realização de teleperícias pelos peritos médicos, o que não configura infração disciplinar ou funcional de qualquer natureza.

 

 

V – As teleperícias no contexto do "Juízo 100% Digital" e do Programa Justiça 4.0 no âmbito da Justiça Federal da 3ª Região

 

Além do reconhecimento da higidez jurídica da realização de teleperícias, cumpre destacar que sua implementação potencializa a efetivação integral de iniciativas adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça voltadas a incrementar o acesso à justiça, a impulsionar a transformação digital do Poder Judiciário e a garantir serviços judiciais mais rápidos, eficazes e acessíveis.

 

Nessa linha, destaca-se a criação do denominado "Juízo 100% Digital" pela Resolução CNJ nº 345/2020 e posteriormente implementado na Justiça Federal da 3ª Região pelo Provimento CJF3R nº 46/2021, instrumento que viabiliza a prática de atos processuais exclusivamente por meio eletrônico e remoto, aí incluída a produção probatória mediante recursos informatizados, a exemplo da realização de audiências por videoconferências e a colheita de prova pericial com uso de telemedicina.

 

Também convém destacar a Resolução CNJ nº 385/2021, que autorizou a criação dos "Núcleos de Justiça 4.0", bem como o Provimento CJF3R nº 103/2024, cujo art. 1º dispôs o seguinte:

 

Art. 1.º No âmbito da Justiça Federal da 3.ª Região, o Programa Justiça 4.0 ("Justiça 4.0 – TRF3") é implementado pela atuação conjunta e funcional de Núcleos de Justiça 4.0 – TRF3 ("Núcleos"), da Rede de Apoio 4.0 – TRF3 ("Rede de Apoio") e do Comitê Gestor da Justiça 4.0 – TRF3 ("Comitê Gestor"), instituídos para planejar, gerir e promover a tramitação célere e o julgamento eficiente de processos judiciais para a obtenção de resultados positivos de boa governança, redução das taxas de congestionamento, equalização de carga de trabalho entre juízes(as) e servidores(as) e cumprimento das metas de nivelamento fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça.

 

Para efeito de viabilizar o atendimento desses objetivos – especialmente a equalização de carga de trabalho e a redução de taxas de congestionamento sem incremento de custos –, os processos em tramitação nas unidades integrantes do Programa Justiça 4.0 devem tramitar em conformidade com o "Juízo 100% Digital", nos termos do art. 1º, § 2º, da Resolução CNJ nº 385/2021 e dos arts. 5º, 12 e 23 do Provimento CJF3R nº 103/2024.

 

Assim, a exigência de atos processuais praticados de maneira eminentemente eletrônica ou remota é da essência dessa nova forma de pensar o funcionamento do Poder Judiciário, sendo necessária a adoção de mecanismos voltados, tanto quanto possível, a conferir maior eficiência aos programas cujo escopo precípuo consiste na racionalização da atividade jurisdicional.

 

Atualmente, o Programa Justiça 4.0 da Justiça Federal da 3ª Região está em expansão, sobretudo em razão dos resultados positivos já constatados com a implementação dos Núcleos de Justiça 4.0.

 

Nesse contexto, consoante consta do Relatório nº 1066851/2024 – DFOR/NUJU (Processo SEI nº 0003586-39.2024.4.03.8001), para a plena realização dos seus objetivos, foi sugerida a criação da denominada "Central de Perícias 4.0" enquanto "passo fundamental no desenvolvimento e na consolidação dos núcleos na Justiça Federal da 3ª Região, de modo a absorver adequadamente a demanda pela realização de perícias médicas e sociais nos ‘processos 4.0’, em tramitação integralmente remota e eletrônica".

 

Uma das iniciativas mencionadas no relatório é justamente a implementação das teleperícias para potencializar as ações do Programa Justiça 4.0, especialmente para viabilizar a centralização de designações de provas técnicas em toda a extensão territorial da Justiça Federal da 3ª Região, o que, aliás, está em consonância com o artigo 7º do Provimento CJF3R nº 46/2021, segundo o qual "a opção pelo "Juízo 100% Digital" não impede a produção de prova pericial, a qual será realizada conforme determinado no processo pelo juiz da causa".

 

Assim, além da ausência de impedimentos jurídicos à realização de teleperícias, sua implementação está em plena consonância com os objetivos almejados pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região no sentido de implementar e potencializar as ações do "Juízo 100% Digital" e do "Programa Justiça 4.0".

 

 

VI – Experiências exitosas na realização de teleperícias pela Justiça Federal

 

A par da notória viabilidade jurídica de realização de teleperícias e da necessidade de sua implementação para intensificar os projetos atualmente em trâmite na Justiça Federal da 3ª Região, convém destacar que a prática vem sendo realizada com êxito em diversas unidades judiciárias, a exemplo das experiências da Seção Judiciária do Maranhão e do Tribunal Região da 4ª Região.

 

Diante das dificuldades na designação de perícias por falta de peritos em algumas especialidades, a Central de Perícias da Seção Judiciária do Maranhão buscou solucionar o problema mediante a realização de perícias virtuais, inclusive com o compartilhamento de médicos cadastrados por outras Seções Judiciárias[10].

 

A iniciativa, que teve por escopo inicial sanar problemas pontuais, revelou-se exitosa, e foi ulteriormente disseminada para outros casos, adotando-se, no entanto, algumas cautelas: i) identificação dos peritos habilitados a realizar o ato; ii) concessão de liberdade ao médico para, durante a perícia virtual, abster-se de elaborar laudo se concluir ser imprescindível, no caso específico, a análise pessoal do periciando; e iii) facultando-se a presença do periciando na sede da Subseção Judiciária e utilização dos sistema virtual usualmente empregado pela Justiça Federal.

 

Por sua vez, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região a prática de teleperícias teve início com o denominado "Projeto Agiliza 116 – Central Eletrônica de Teleperícia, Prova Técnica Simplificada e Perícias em Ações Previdenciárias", inicialmente gestado no âmbito da respectiva Corregedoria Regional durante a pandemia do covid-19[11].

 

O projeto tem por objetivo a criação de uma central regional de perícias, de modo a viabilizar a adoção de alternativas à realização de periciais médicas presenciais, diante das dificuldades de realização do ato em algumas localidades.

 

Inicialmente, foi publicado edital de chamamento público para cadastramento dos médicos para atuação em teleperícias e posterior disseminação da prática pela Justiça Federal da 4ª Região.

 

Embora iniciado na pandemia, o projeto continua em atividade e não importou incremento de custos aos cofres públicos, destacando-se, inclusive, a recente publicação de edital para cadastramento de novos peritos em 22/01/2024, consoante publicado no Diário Eletrônico da Justiça Federal da 4ª Região.

 

Essas práticas, a par de corroborarem a viabilidade jurídica da realização de teleperícias, demonstram que a adoção de medidas alternativas à perícia presencial pode conferir ganhos de eficiência para os segurados e para o Poder Judiciário, favorecendo a duração razoável do processo e a célere entrega da prestação jurisdicional em ações envolvendo a concessão de prestações previdenciárias fundamentais.

 

 

VII – Diretrizes gerais para a adequada utilização da teleperícia como forma de realização da perícia médica judicial.

 

Uma vez constatada a viabilidade jurídica da produção da perícia médica judicial por meio de teleperícia, é oportuno estabelecer algumas diretrizes gerais para sua adequada utilização, tendo em vista as peculiaridades típicas da realização de atos processuais por meios tecnológicos e sua aplicação ao contexto da perícia médica.

 

Visa-se indicar medidas que assegurem que, na produção da prova pericial por meio virtual, sejam respeitados os direitos tanto da parte que se submete ao exame quanto do profissional que o realiza, além de garantir a observância dos deveres funcionais pertinentes.

 

Nesse sentido, apresentam-se as seguintes recomendações, como parâmetros mínimos a orientar a realização das teleperícias médicas no âmbito de ações judiciais:

 

1. Deve o médico perito seguir os padrões normativos e éticos usuais da perícia presencial;

 

2. Devem as partes no processo manifestar concordância expressa quanto à realização da perícia médica virtual;

 

3. Ao médico perito deve ser assegurada autonomia para:

 

3.1. avaliar a adequação e suficiência da teleperícia para a formação de sua opinião técnica no caso concreto, segundo os dados constantes do prontuário médico e exames trazidos aos autos.

 

3.2. constatar, durante a realização de teleperícia, a necessidade de avaliação presencial do periciando e proceder ao encaminhamento para a realização dessa modalidade de exame.

 

4. A teleperícia deve ser realizada em plataforma eletrônica adequada, preferencialmente aquela utilizada pelo Poder Judiciário para a realização de atos processuais virtuais ou híbridos;

 

5. Como forma de assegurar privacidade ao periciando e garantir o sigilo profissional:

 

5.1. os dados e imagens do periciando devem ser preservados, observando o perito as normas legais e regulamentares pertinentes à guarda, ao manuseio, à integridade, à veracidade, à confidencialidade, à privacidade, à irrefutabilidade e à garantia do sigilo profissional das informações;

 

5.2. O exame pericial deve ser realizado sem a intervenção de servidores ou membros do Poder Judiciário ou a participação de terceiros em geral, ressalvada a presença de eventual assistente técnico;

 

5.3. À semelhança do que ocorre com as perícias médicas presenciais, a teleperícia não deve ser registrada ou gravada por meios audiovisuais, sendo a produção de laudo pericial suficiente à materialização da prova a ser produzida.

 

6. Deve ser facultada ao segurado o comparecimento presencial à Subseção Judiciária de seu domicílio para realizar o ato de maneira virtual, de modo a reduzir eventuais dificuldades ou impossibilidades técnicas de acesso a equipamentos eletrônicos, especialmente diante da realidade socioeconômica de cada localidade.

 

 

VIII – Conclusão

 

Diante dos pontos abordados na presente nota técnica, o Centro Local de Inteligência da Justiça Federal de São Paulo apresenta as seguintes conclusões:

 

1. Não há impedimento legal à realização de teleperícias, pois:

 

a. O advento da Lei nº 14.724/2023 admitindo sua realização no âmbito da Administração Pública revogou os atos normativos infralegais contrários a esta possibilidade;

 

b. A proibição da prática em âmbito infralegal viola a legalidade, uma vez que o Código de Processo Civil não exige atendimento presencial como requisito mínimo à validade do laudo pericial e contempla a possibilidade de emprego de recursos tecnológicos na produção probatória;

 

c. A possibilidade de realização de perícia médica virtual no contexto de processos judiciais que tenham por objeto benefícios previdenciários e assistenciais está acobertada pela coisa julgada material produzida no âmbito da ACP nº 5039701-70.2020.4.04.7100/RS.

 

2. A utilização de perícias médicas virtuais em ações judiciais pode representar importantes benefícios à sociedade e aos atores envolvidos na prestação jurisdicional:

 

a. Ao Estado, gera economia de recursos, agilizando o processamento das ações e reduzindo a incidência de encargos decorrentes de eventual condenação e dispensando o fornecimento de condições materiais de deslocamento do jurisdicionado para a realização do exame presencial;

 

b. Ao Poder Judiciário, implica ganhos em eficiência e produtividade, atendendo a uma demanda reprimida, especialmente em Subseções localizadas no interior, em que é frequente a escassez de peritos de determinadas especialidades;

 

c. Ao jurisdicionado, contribui para a celeridade da resposta estatal ao conflito de interesses apresentado, efetivando o direito de acesso à justiça e garantindo economia de tempo e recursos financeiros.

 

3. Embora válida a realização de teleperícias, sua realização deve observar os parâmetros mínimos indicados no item V.

 

 

IX – Sugestões

 

Diante de todos os pontos aqui expostos, antes de implementar-se a realização de teleperícias como prática corriqueira, o Centro Local de Inteligência da Justiça Federal de São Paulo propõe as seguintes sugestões:

 

1. Elaboração de edital para identificar os peritos interessados em realizar teleperícias

 

De acordo com as diretrizes gerais, a realização de teleperícia demanda aceitação do médico-perito quanto ao procedimento, elemento indispensável para viabilizar a prova técnica.

 

Assim, sugere-se a publicação de edital para formalização de cadastro de potenciais interessados em sua realização, inclusive com comunicação direta àqueles previamente cadastrados no Sistema AJG, que já conhecem a rotina de laudos periciais da Justiça Federal da 3ª Região.

 

2. Divulgação da presente Nota Técnica

 

Na mesma linha, diante da controvérsia jurídica aqui analisada quanto ao panorama normativo autorizador das teleperícias, sugere-se ampla divulgação da presente Nota Técnica, de modo a esclarecer aos médicos-peritos a existência de amparo legal e judicial para a realização do ato, sem receios de eventuais sanções disciplinares a cargo do Conselho Federal de Medicina.

 

Reitere-se, nesse sentido, que o trânsito em julgado da Ação Civil Pública n. 5039701-70.2020.4.04.7100, além de assentar a nulidade de pareceres do Conselho Federal de Medicina que impediam a realização de teleperícias, impede a autarquia de adotar quaisquer medidas contrárias à realização de perícia virtual/teleperícias no contexto de benefícios previdenciários e assistenciais, notadamente de natureza disciplinar.

 

A decisão judicial possui efeitos em âmbito nacional e, por isso, deve ser observada pelo CFM, cujo descumprimento pode ser comunicado ao Ministério Público Federal por qualquer profissional que tenha contra si instaurado processos disciplinares decorrentes da realização de teleperícias.

 

3. Realização de Projeto-Piloto pelos Núcleos de Justiça 4.0

 

A despeito da validade jurídica da designação de teleperícia para efeito de aferição da incapacidade do segurado, bem como da possibilidade de sua realização por peritos médicos de acordo com as diretrizes mínimas acima indicadas, sua implementação no cotidiano das Varas Federas e dos Juizados Especiais Federais implica, em certo aspecto, a necessidade de readequação de rotinas, especialmente nas respectivas secretarias.

 

Isso porque, a realização do ato demandará, dentre outros pontos, a colheita de aquiescência do segurado, a identificação dos peritos habilitados à realização virtual da prova técnica, a avaliação circunstancial acerca a adequação e suficiência da teleperícia para a formação da opinião do médico perito e, ainda, coordenação desses elementos pela unidade jurisdicional.

 

Assim, diante da necessidade de identificar rotina mais conveniente para equacionamento dessas balizas, é pertinente que esse procedimento seja testado em menor escala previamente à sua expansão por toda a Justiça Federal da 3ª Região.

 

Por isso, sugere-se a realização de projeto-piloto na designação de teleperícias, o que está em consonância com as discussões em andamento no Grupo de Trabalho da Central de Perícias Médica e Social dos Núcleos 4.0 da 3ª Região ("GT Central de Perícias 4.0"), como consta do Relatório nº 1066851/2024 – DFOR/NUJU (Processo SEI n. 0003586-39.2024.4.03.8001).

 

A realização do projeto-piloto viabilizará não apenas a identificação de eventuais entraves e ajustes necessários a evitar quaisquer riscos de nulidade nos atos processuais, mas, sobretudo, a inauguração de discussões entre a Seção Judiciária de São Paulo, a Procuradoria Regional Federal da 3ª Região (PRF3) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a respeito das formas mais adequadas para a implementação da sistemática de teleperícias na Justiça Federal da 3ª Região.

 

Sugere-se que tal procedimento seja acompanhando tanto pelo Núcleo de Justiça 4.0 quanto pelo CLISP, possibilitando, ao final, a coleta de dados estatísticos a respeito do grau aceitação da teleperícia, a confrontação entre a qualidade dos laudos de perícias presenciais e perícias virtuais, eventuais repercussões quanto à celeridade do processo, dentre outros pontos.

 

Com a coleta desses dados, será possível avaliar o êxito do projeto para aferir a oportunidade e conveniência de ampliar e regulamentar institucionalmente a realização e teleperícias, subsidiando, assim, decisões a serem adotadas pelos órgãos pertinentes da Justiça Federal da 3ª Região.

 

 

X – Encaminhamentos

 

Por fim, de modo a viabilizar a análise das instâncias competentes acerca da presente nota técnica, o Centro Local de Inteligência da Justiça Federal de São Paulo delibera pela adoção das seguintes medidas:

 

a) Encaminhamento da presente Nota Técnica à Presidência do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e à Coordenação dos Juizados Especiais Federais da 3ª Região para ciência;

 

b) Comunicação ao Comitê Gestor da Justiça 4.0 e aos Núcleos de Justiça 4.0, de modo a avaliarem a pertinência de realização de projeto-piloto em conjunto com o CLISP, nos termos propostos;

 

c) Cientificar a Direção do Foro da Seção Judiciária de São Paulo, a fim de divulgar os resultados alcançados entre magistrados que atuam na Justiça Federal da 3ª Região, de modo a disseminar os trabalhos do CLISP, inclusive para eventual indicação de outros temas a serem, em tese, objeto de projetos de inovação semelhantes;

 

d) Compartilhar a presente Nota Técnica com o Centro Local de Inteligência da Seção Judiciária do Mato Grosso do Sul, permitindo a difusão de cultura de estudos empíricos voltados ao aprimoramento das ações da Justiça Federal da 3ª Região;

 

e) Dar ciência da presente Nota Técnica à Procuradoria Regional Federal da 3ª Região e à Seção da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado de São Paulo (OAB/SP), para que tomem conhecimento das iniciativas voltadas a potencializar a realização de teleperícias, especialmente para eventual acompanhamento e sugestões no tocante à realização de projeto-piloto;

 

f) Remessa desta Nota Técnica ao Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal, com base no art. 11, inciso I, da Resolução CJF n. 499/2018, para os encaminhamentos que julgar adequados em âmbito nacional.

 

 

 

[1] Em 30 de março de 2020.

 

[2] É vedado ao médico:

 

Art. 92. Assinar laudos periciais, auditoriais ou de verificação médico-legal caso não tenha realizado pessoalmente o exame.

 

(...)

 

Art. 98. Deixar de atuar com absoluta isenção quando designado para servir como perito ou como auditor, bem como ultrapassar os limites de suas atribuições e de sua competência.

 

[3] Resolução CFM nº 2.314/22, Art. 5º: A telemedicina pode ser exercida nas seguintes modalidades de teleatendimentos médicos: I) Teleconsulta; II) Teleinterconsulta; III) Telediagnóstico; IV) Telecirurgia; V) Telemonitoramento ou televigilância; VI) Teletriagem; VII) Teleconsultoria.

 

[4] Resolução CFM nº 2.314/22, Art. 6º A TELECONSULTA é a consulta médica não presencial, mediada por TDICs, com médico e paciente localizados em diferentes espaços.

 

§ 1º A consulta presencial é o padrão ouro de referência para as consultas médicas, sendo a telemedicina ato complementar.

 

(...)

 

§ 4º O médico deverá informar ao paciente as limitações inerentes ao uso da teleconsulta, em razão da impossibilidade de realização de exame físico completo, podendo o médico solicitar a presença do paciente para finalizá-la.

 

[5] Resolução CFM nº 2.325/2022, Art. 2º: O uso da telemedicina para realização de avaliações periciais é de caráter excepcional, podendo ser utilizada em situações específicas e pontuais, conforme descritas nos parágrafos abaixo.

 

§ 1º No caso de morte do periciando;

 

§ 2º A perícia indireta ou documental pode se referir apenas a objeto que NÃO envolva:

 

I) a avaliação de dano pessoal;

 

II) as capacidades (incluindo a laborativa);

 

III) a invalidez ou que seja de natureza médico legal.

 

§ 3º As juntas médicas periciais, desde que pelo menos um dos médicos esteja presencialmente com o periciando, que deve realizar o exame físico e o descrever aos demais participantes.

 

[6] No julgamento do Tema 1075 de Repercussão Geral em 08/04/2021.

 

[7] Lei 7.347/1985, Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

 

[8] Lei 8.078/1990, Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local: (…) II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.

 

[9] "(...) Ante o exposto, resolvo o mérito do processo, confirmando a medida liminar, para julgar procedentes os pedidos (CPC, art. 487, I) e: a) condenar o CFM a abster-se de adotar quaisquer medidas contrárias, notadamente de natureza disciplinar, à realização de prova técnica simplificada, perícia virtual/teleperícia ou perícia indireta em processos judiciais que tenham por objeto benefícios previdenciários e assistenciais; b) declarar a nulidade dos Pareceres CFM 3/2020 (PROCESSO-CONSULTA CFM nº 7/2020) e 10/2020 (PROCESSO-CONSULTA CFM nº 16/2020).(...)"

 

[10] https://www.trf1.jus.br/trf1/noticias/cooperacao-entre-secoes-judiciarias-da-jf1-viabiliza-resolucao-de-processos-com-telepericias

 

[11]https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=953&seq=1%7C327

 

Documento assinado eletronicamente por Gabriel Herrera, Juiz Federal Relator, em 02/09/2024, às 17:38, conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006.

Documento assinado eletronicamente por Fernando Caldas Bivar Neto, Juiz Federal Relator, em 02/09/2024, às 17:41, conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006.

Documento assinado eletronicamente por Eliana Rita Maia Di Pierro, Juíza Federal Relatora, em 02/09/2024, às 17:45, conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006.

Documento assinado eletronicamente por Letícia Mendes Gonçalves, Juíza Federal Relatora, em 02/09/2024, às 17:50, conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006.

Documento assinado eletronicamente por Fernanda Souza Hutzler, Juíza Federal Revisora, em 02/09/2024, às 18:19, conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006.

 

Esse texto não substitui o publicado no Diário eletrônico