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Nota Técnica 14 (CLISP)/2020

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02/09/2020

DE JF 3. REGIÃO - ADM,n. 163, p. 7-14.Data de disponibilização: 04/09/2020. Data de publicação: 1º dia útil seguinte ao da disponibilização no Diário eletrônico (Lei 11419/2006)

Dispõe sobre a realização de atos processuais à distância durante o período de trabalho semipresencial decorrente da pandemia de Covid-19, na Esfera Criminal

NOTA TÉCNICA DO CENTRO LOCAL DE INTELIGÊNCIA N. 14 / 2020 Ementa: Nota Técnica sobre a realização de atos processuais à distância durante o período de trabalho semipresencial decorrente da pandemia de Covid-19. Esfera Criminal. Relatores: Nino Oliveira Toldo, Desembargador Federal Renata Andrade... Ver mais
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NOTA TÉCNICA DO CENTRO LOCAL DE INTELIGÊNCIA N. 14 / 2020

 

Ementa: Nota Técnica sobre a realização de atos processuais à distância durante o período de trabalho semipresencial decorrente da pandemia de Covid-19. Esfera Criminal.

 

Relatores:

 

Nino Oliveira Toldo, Desembargador Federal

Renata Andrade Lotufo, Juíza Federal

Alessandro Diaferia, Juiz Federal

Raecler Baldresca, Juíza Federal

Barbara de Lima Iseppi, Juíza Federal Substituta

 

Revisores:

 

Membros do CLISP.

 

I. Introdução;

II. A prática dos atos processuais na esfera criminal;

III. O devido processo legal e a utilização de tecnologia para comunicação e realização de atos processuais;

IV. A pandemia de Covid-19 e a prática de atos processuais à distância;

V. Réus presos; VI. Conclusões; VII. Recomendações.

 

I. Introdução

 

No mês de março de 2020, o mundo foi surpreendido pela declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que havia uma pandemia de Covid-19, doença causada pelo vírus SARS-Cov-2 (¿novo coronavírus¿), que é de fácil propagação.

 

A fim de diminuir essa propagação e para evitar o colapso do sistema de saúde, que não teria como absorver tantos novos pacientes ao mesmo tempo, uma das primeiras e principais medidas recomendadas pela OMS. adotada pelos governos de quase todos os países. foi o distanciamento social, caracterizado pela paralisação de todas as atividades sociais que envolvessem aglomeração de pessoas.

 

Essa medida impactou o sistema de justiça, que, de um momento para outro, paralisou o atendimento presencial em todas as unidades judiciárias, tendo sido suspensos os processos e os prazos processuais e canceladas sessões de julgamento nos tribunais, audiências, perícias médicas, citações e intimações pessoais e todos os demais atos que envolvessem a presença física. Em outras palavras, a Justiça parou.

 

Em razão disso o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução nº 313, de 19 de março de 2020, estabeleceu o que chamou de regime de plantão extraordinário para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o fim de prevenir o contágio pelo novo coronavírus e garantir o acesso à Justiça nesse período emergencial, dada a natureza essencial da atividade jurisdicional.

 

Dentre várias medidas, o CNJ estabeleceu o funcionamento desse plantão extraordinário em horário idêntico ao do expediente forense regular, com suspensão do trabalho presencial de magistrados, servidores, estagiários e colaboradores nas unidades judiciárias, assegurada a manutenção dos serviços essenciais em cada Tribunal, a quem competiria definir as atividades essenciais a serem prestadas.

 

Essa Resolução também determinou que, com a suspensão do atendimento presencial, cada unidade judiciária deveria manter atendimento remoto, autorizando os tribunais a disciplinar o trabalho remoto de magistrados, servidores e colaboradores para realização de expedientes internos.

 

Na Terceira Região foi inicialmente baixada a Portaria Conjunta nº 1, de 12 de março de 2020, da Presidência do Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF-3) e da Corregedoria Regional da Justiça Federal da Terceira Região (CORE) a qual, dentre outras medidas de prevenção, determinou a suspensão das atividades forenses de qualquer espécie, facultando a conversão de sessões presenciais em virtuais e a realização de audiências, inclusive as de custódia de presos, por videoconferência.

 

Sucederam-se a essa Portaria Conjunta diversas outras, destacando-se a nº 10, de 3 de julho de 2020, que tratou de medidas necessárias ao restabelecimento gradual das atividades presenciais na Terceira Região, a partir de 27 de julho de 2020, prorrogando, porém, o trabalho remoto até 30 de outubro de 2020.

 

Quanto às sessões de julgamento e audiências, essa última Portaria Conjunta dispôs que deveriam ser realizadas, preferencialmente, por meio virtual ou videoconferência, somente sendo realizadas por meio presencial ou mistas se justificadas por decisão judicial e na hipótese de não haver possibilidade de utilização dos sistemas de videoconferência atualmente disponíveis, observadas as condições necessárias de distanciamento social, limite máximo de pessoas no mesmo ambiente e atendidas as condições sanitárias recomendadas na Resolução nº 322, de 1º de junho de 2020, do CNJ.

 

A pandemia de Covid-19 fez com que o Poder Judiciário rapidamente se adaptasse a uma nova realidade, com quebra de paradigmas, para que não interrompesse a prestação do serviço jurisdicional, essencial para a sociedade.

 

Nesse sentido, o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal realizou, no período de 10 a 14 de agosto de 2020, a I Jornada de Direito e Processo Penal. Nesse evento, foram aprovados em sessão plenária 32 enunciados sobre temas de grande relevância, destacando-se o enunciado nº 30, que tem a seguinte redação: . Excepcionalmente e de forma fundamentada, nos casos em que se faça inviável a realização presencial do ato, é possível a realização de audiência de custódia por videoconferência. .

 

Mas não é só. Em recente artigo,[1] Richard Susskind destacou que, em decorrência da pandemia, o sistema de justiça se deparou com três grandes desafios. Dois deles advindos diretamente do novo coronavírus e, por isso, novos, enquanto o terceiro, mais duradouro e já existente, advém de uma alarmante verdade: a demora e o custo da resolução de problemas no âmbito judicial.

 

O primeiro desafio mencionado por Susskind consiste em manter um nível suficiente de serviço judiciário enquanto os tribunais e juízos estão fechados. O segundo desafio decorre do primeiro e diz respeito a como o serviço acumulado será realizado, uma vez que o sistema judicial não consegue dar vazão à sua carga normal de trabalho.

 

No Brasil, as medidas adotadas pelo CNJ e, particularmente, pelo TRF-3, atestam que os dois primeiros desafios têm sido devidamente enfrentados. A adoção do trabalho à distância na Terceira Região permitiu que fossem praticados quase trezentos mil atos (entre despachos, decisões, sentenças e acórdãos) e realizadas mais de três milhões de movimentações processuais apenas no primeiro mês de trabalho [2] Na 11ª Turma do TRF-3, especializada em matéria penal, por exemplo, foram realizadas quatro sessões por videoconferência, nas quais houve 46 sustentações orais, de março a junho de 2020.

 

Tais números mostram que a Justiça adaptou-se bem ao novo panorama e que, em relação ao terceiro desafio, a adoção do trabalho à distância é uma alternativa. Esse tema, todavia, pode e deve ser abordado em outro momento.

Passado o impacto inicial causado pela pandemia de Covid-19, o importante é tratar da nova fase de trabalho ora implementada, semipresencial e por prazo indefinido, na qual os atos processuais ainda deverão ser realizados predominantemente à distância, até que surja vacina para o novo coronavírus e a população seja imunizada.

 

Nesse contexto, a presente Nota Técnica tem por objetivo subsidiar a adoção de meios alternativos para a prática de atos que tradicionalmente eram realizados em presença física e, dada a nova realidade, não mais podem ser praticados dessa forma, de modo a tornar célere e efetiva a prestação jurisdicional nesse período.

 

II. A prática dos atos processuais na esfera criminal

 

A necessidade de distanciamento social trouxe consequências importantes para os atos processuais, tradicionalmente realizados de forma presencial.

 

Antes da pandemia, as regras estabelecidas partiam do contato pessoal entre magistrados, servidores e as partes do processo, havendo uma interpretação restritiva quanto à realização de atos por videoconferência, os quais, embora previstos na lei, eram aplicados de forma excepcional. A comunicação dos atos processuais, especialmente citações e intimações (de réus e testemunhas) sempre foi realizada pessoalmente por oficial de justiça e as audiências eram realizadas presencialmente.

 

A disciplina e o procedimento da citação e das intimações estão previstos nos artigos 351 e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), promulgado em 3 de outubro de 1941, ou seja, há quase 80 anos, tendo sofrido poucas alterações desde então.

 

No artigo 357, inciso I, do CPP, por exemplo, é considerado requisito da citação por mandado que o oficial de justiça faça a leitura deste ao citando e que lhe entregue a contrafé, na qual serão mencionados o dia e a hora da citação. No inciso II, prevê-se que o oficial de justiça faça constar, na certidão, a entrega da contrafé e sua aceitação ou recursa pelo citando.

 

Quanto ao réu preso, o artigo 360 do CPP, com a redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, prevê que a citação deverá ser pessoal. Em relação às intimações dos acusados, das testemunhas e das demais pessoas que devam tomar conhecimento de qualquer ato, o artigo 370 do CPP, com a redação dada pela Lei nº 9.271, de 17 de abril de 1996, determina que deverão ser observadas as regras aplicáveis às citações.

 

Contudo, dispõe que a intimação do defensor constituído, do advogado do querelante e do assistente será feita por publicação no órgão incumbido da publicidade dos atos judiciais (§ 1º) e que, caso não haja órgão assim, a intimação se faça diretamente pelo escrivão, por mandado, por via postal com comprovante de recebimento ou por qualquer outro meio idôneo (§ 2º). É importante ressaltar que, atualmente, as intimações se fazem por publicação no diário judicial eletrônico, pela rede mundial de computadores (internet).

 

Acrescente-se que, em qualquer hipótese, não há vedação à comunicação dos atos processuais com a utilização dos recursos tecnológicos se restar comprovada a ciência inequívoca da parte a ser intimada, ou seja, o alcance da finalidade do ato.

 

Quanto à oitiva de testemunhas, a regra é que a testemunha preste seu depoimento presencialmente perante o juiz da causa (CPP, art. 204). Se a testemunha morar fora da área de jurisdição do juiz, a oitiva será feita por carta precatória perante o juiz do lugar de sua residência (CPP, art. 222, caput).

 

A Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, alterou diversos dispositivos do CPP, dentre os quais o artigo 217, fazendo nele constar que, [s]e o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor¿. Portanto, o CPP admite, nessa hipótese, o uso da videoconferência para a prática de ato processual.

 

A norma acima citada também incluiu o parágrafo 3º no artigo 222 do CPP para prever que, no caso da testemunha que more fora da área de jurisdição do juiz, sua oitiva possa ser feita por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, permitida a presença do defensor e podendo ser realizada, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento¿. Essa previsão agilizou muito os procedimentos, permitindo que a testemunha seja ouvida e eventualmente inquirida pelo juiz natural da causa, o que é de grande importância para a concretização do direito de ampla defesa.

 

No que toca ao interrogatório do acusado, a Lei nº 10.792, de 2003, trouxe importante alteração no caput do artigo 185 ao tornar obrigatório que a qualificação e o interrogatório se façam na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. Todavia, incluiu o parágrafo 1º, prevendo que o interrogatório do réu preso seria feito no estabelecimento prisional em que este se encontrasse, em sala própria, desde que fossem garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o ato seria praticado nos termos do CPP, ou seja, perante o juiz da causa, no Fórum.

 

Como essa norma não era prática porque não havia salas próprias para audiência nos presídios e não havia como ser garantida a segurança necessária, especialmente depois de ataques de facções criminosas no ano de 2006, os réus presos eram requisitados para as audiências no Fórum. Por isso, a Lei nº 11.900, de 2009, alterou o CPP para prever a possibilidade de realização de interrogatório e outros atos processuais por sistema de videoconferência.

 

Embora essa Lei tenha mantido a previsão, como regra (§ 1º), de que o interrogatório do réu preso será realizado, em sala própria, no estabelecimento em que estiver recolhido, alterou o parágrafo 2º para prever que, excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:

 

i) prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento;

ii) viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;

iii) impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código; iv) responder à gravíssima questão de ordem pública.

 

A Lei nº 11.900, de 2009 também previu que, em qualquer modalidade de interrogatório o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor e que, se realizado por videoconferência, também será garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum, assim como entre este e o preso (CPP, art. 185, § 5º).

 

Previu-se no parágrafo 6º do art. 185 do CPP que a sala reservada no estabelecimento prisional para a realização de atos processuais por sistema de videoconferência será fiscalizada pelos corregedores e pelo juiz de cada causa, como também pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil.

 

Além dos dispositivos legais citados, o CNJ, no exercício do seu papel de desenvolver políticas públicas voltadas à efetividade do Poder Judiciário, muito antes da pandemia já havia expedido atos normativos relativos à prática de atos por meio de sistema audiovisual e videoconferência.

 

Em 6 de abril de 2010, publicou a Resolução nº 105, por meio da qual determinou o desenvolvimento e a disponibilização de sistemas eletrônicos de gravação de depoimentos, realização de interrogatório e inquirição de testemunhas por videoconferência.

 

O artigo 3º dessa Resolução prevê a tomada do depoimento da testemunha residente fora da sede do juízo pelo sistema de videoconferência, ao invés da expedição de carta precatória, estabelecendo, ainda, a possibilidade de interrogatório de réu preso por meio do mesmo sistema.

 

Logo após a declaração da pandemia e da determinação de distanciamento social, o CNJ instituiu plataforma emergencial de videoconferência para a realização de audiências e sessões de julgamento nos órgãos do Poder Judiciário, denominada Webex e gerenciada por aplicativo da empresa Cisco (Portaria nº 61, de 31 de março de 2020). Essa plataforma essa foi objeto de Nota Técnica Conjunta dos Centros de Inteligência da Justiça Federal de São Paulo e do Rio Grande do Norte sobre teleaudiências, imediatamente utilizada por muitos juízos e tribunais.

 

Além da disponibilização do meio tecnológico, foram expedidas orientações para viabilizar o trabalho e a continuidade da prestação jurisdicional por meio remoto, como, por exemplo, a Resolução nº 314, de 20 de abril de 2020, que dispõe que somente serão adiados atos processuais eletrônicos ou virtuais por absoluta impossibilidade técnica ou prática (art. 3º. § 2º)

 

O exame de todas essas regras indica que, se antes da pandemia a interpretação dos dispositivos partia do contato pessoal entre os sujeitos atuantes no processo como a única realidade possível, admitindo-se a realização de atos à distância apenas de forma excepcional, a nova realidade impõe uma forma diferente de se extrair significado das normas processuais penais.

 

Nessa linha, seja porque o distanciamento social encontra-se nas hipóteses previstas na lei, seja porque os termos presença e comparecimento ao processo não são incompatíveis com o sistema de videoconferência, não há nada que obste a realização de atos processuais à distância, desde que sejam observados os direitos e as fundamentais do réu preso. Trata-se de compatibilizar a prática de atos processuais, tradicionalmente presenciais, mas agora em distanciamento social, com as regras constitucionais e legais do devido processo legal.

 

III. O devido processo legal e a utilização de tecnologia para comunicação e realização de atos processuais O aspecto que causa maior preocupação no uso de novas tecnologias é justamente o mesmo que pode ser melhor beneficiado e potencializado: o devido processo legal.

 

Com efeito, a partir dos cânones constitucionais do nosso sistema processual, cabe ao Poder Judiciário assegurar o contraditório e a ampla defesa, a paridade de armas, sem descurar da necessidade da razoável duração do processo. A tarefa que incumbe ao juiz consiste em conduzir os feitos em perfeita sintonia com todos os princípios e regras constitucionais do processo, harmonizando-os às novas necessidades que surgem em nossa sociedade.

 

Essa harmonização, nas perspectivas material e processual do devido processo legal, é essencial, pois será a medida de eficácia concreta da cidadania e da dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito em que é constituído o Brasil, como o proclama o artigo 1º da Constituição da República.

 

No que toca à razoável duração do processo, hoje alçada à condição de princípio constitucional (CF, art. 5º, LXXVIII), Carnelutti advertia que o slogan da justiça rápida e segura, que circula nos discursos dos políticos leigos, contém uma contradição em termos: se a justiça é segura não é rápida, se é rápida não é segura[3].

 

Apesar disso, há muito tempo críticas vêm sendo feitas ao Poder Judiciário pela demora da prestação jurisdicional e muitas dessas críticas são procedentes, na medida em que, mesmo no século XXI, ainda se observam práticas não condizentes com a necessidade de rápida resposta judicial às demandas.

 

O grande volume de processos contribui para essa demora e isso torna o desafio da duração razoável ainda mais complexo, pois leva o juiz a assumir, cada vez mais, a função de gestor, valendo-se de ferramentas tecnológicas para prestar a jurisdição com a rapidez que a sociedade contemporânea exige.

 

Sucessivas reformas na legislação processual foram feitas ao longo das últimas décadas, como, por exemplo, no sistema de tutela coletiva, na previsão das tutelas cautelares e, posteriormente, das antecipatórias, para atender a situações caracterizadas pela urgência e pelo risco de ineficácia do provimento, decorrente da necessidade de se percorrer um trâmite processual moroso.

 

No processo penal, também houve o mesmo movimento, prevendo-se instrumentos legais para permitir agilizar o procedimento sem deixar de garantir os interesses maiores, tanto na perspectiva do interesse público quanto na do imputado. Entretanto, há um ponto comum ao processo civil e ao processo penal que contribui ¿ ou ao menos potencializa a demora na prestação jurisdicional: o apego a práticas e formas que atualmente não encontram mais razão de ser, concebidas em outro momento histórico da sociedade, como visto acima ao se falar da citação e das intimações. A pretexto de garantir a regularidade formal do procedimento, muitas vezes a praxe acaba tornando-o burocrático, custoso e o processo se torna moroso. Privilegia-se a forma em detrimento do conteúdo.

 

Especificamente no processo penal, em que o risco de prescrição é um perigo constante, ainda maior nos crimes de pena baixa, é comum encontrar quem adote a morosidade do processo como linha de defesa, apostando na demora do procedimento para se alcançar a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva.

 

Nesse sentido, é importante focar, sob as luzes do devido processo legal, no princípio da instrumentalidade das formas, que assegura a validade dos atos processuais cuja finalidade tenha sido alcançada sem prejuízo dos princípios maiores do sistema processual penal: o contraditório e a ampla defesa.

 

Sob essa perspectiva, a razoável duração do processo é garantida pela utilização de novas tecnologias que assegurem o atingimento da finalidade do ato processual de comunicação ou de instrução sem a presença física das pessoas.

 

Se antes da pandemia o day in court constituía uma situação somente aferível pela presença física do imputado (diante da inexistência de outra alternativa), isso não é mais verdade, dado que há diversas formas de se alcançar o objetivo do ato processual sem a presença física da pessoa no ambiente do Fórum.

 

Assim, por exemplo, é o caso da videoconferência, em que as pessoas se reúnem, podem expressar-se e praticar atos jurídicos dotados de validade e eficácia, para todos os fins. É preciso, pois, que se tenha uma visão mais ampla do processo evolutivo pelo qual passa nossa sociedade e no qual as ferramentas tecnológicas têm papel decisivo.

 

Nessa linha, também se pode concluir que a maior resistência à utilização de novas tecnologias é cultural, decorrente do injustificado receio da sua utilização pelo simples fato de não se saber utilizá-la adequadamente ou de não se ter a confiabilidade necessária na ferramenta em si.

 

Apesar disso, é preciso persistir porque somente o uso constante da tecnologia poderá levar ao seu aperfeiçoamento, corrigindo-se eventuais falhas técnicas ou dificuldades subjetivas na sua utilização. O processo judicial eletrônico (PJe) é uma realidade e todos deverão adaptar-se a ele.

 

Em 2007 Fábio Ulhoa Coelho[4] relatou ser histórica a relutância aos novos meios de comunicação processual. Disse ele: Em 1929, a Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Minas Gerais anulou uma sentença judicial porque não tinha sido escrita pelo juiz de próprio punho. A decisão havia sido datilografada! O tribunal considerou, naquela oportunidade, que o uso da máquina de escrever era incompatível com um dos valores basilares do processo penal, o do sigilo das decisões antes da publicação.

 

No fim da década de 1980, várias sentenças foram anuladas porque os juízes haviam usado o microcomputador. Os tribunais receavam que o novo equipamento, na medida em que permitia a reprodução de sentenças em série, pudesse prejudicar a devida atenção do magistrado para as particularidades de cada caso.

 

Ao final, Coelho enfatizou a necessidade de abertura do mundo jurídico para o acolhimento dos benefícios da tecnologia, pois ¿a incerteza quanto à pertinência dos interrogatórios por videoconferência vai dragar recursos valiosos e escassos que poderiam ser empregados de modo muito mais eficiente na Segurança Pública.

 

Assim, é necessário afirmar que o devido processo legal constitui, mais do que um conceito, um padrão cravado em nossa Constituição Federal, devendo, em sua concretização, ser necessariamente permeável e atento às mudanças observadas na sociedade, diante de sua essência instrumental.

 

Sob tal prisma, importa que se considere, no crivo efetuado à luz desse princípio, a grande contribuição que as novas tecnologias trazem para a celeridade processual, sem qualquer prejuízo ao contraditório, à ampla defesa e à paridade de armas.

 

IV. A pandemia de Covid-19 e a prática de atos processuais à distância

 

Desde o início do século XXI, o Poder Judiciário vem rumando para a virtualização do processo. Na Terceira Região, por exemplo, os Juizados Especiais Federais não têm autos físicos desde a sua instalação, em 2002.

 

A Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que derivou de iniciativa da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, dispõe sobre a informatização do processo judicial.

 

A partir dela foi possível a comunicação eletrônica dos atos processuais e a assinatura digital, bem como o desenvolvimento de sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais por meio de autos total ou parcialmente digitais, utilizando, preferencialmente a internet e acesso por meio de redes internas e externas. O CNJ tem coordenado a implantação do processo eletrônico no Brasil.

 

Em dezembro de 2013, foi aprovada a Resolução nº 185, que instituiu o PJe como sistema nacional de processamento de informações e prática de atos processuais, a plataforma utilizada na maior parte dos Tribunais, inclusive o TRF-3. Desde então, tem se intensificado a migração dos processos físicos para o processo eletrônico.

 

A partir de 2018, houve uma clara aceleração do percentual de processos eletrônicos no Brasil, conforme observado pelo CNJ no relatório anual Justiça em Números[5].

 

Em julho de 2019, o TRF-3 iniciou o Projeto 100% PJe com o objetivo de concluir a virtualização do acervo de feitos físicos ainda em tramitação na Justiça Federal da Terceira Região, a fim de que as unidades judiciárias possam aproximar-se da realização de atividades exclusivamente na plataforma do PJe. Para isso, houve alocação de força de trabalho e fixação de metas[6].

 

Acostumar-se ao processo eletrônico implica mudança de mentalidade de todos os atores processuais, não apenas dos magistrados e dos servidores do Poder Judiciário. A Advocacia, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Procuradorias, a Polícia e o público em geral precisam adaptar-se a essa realidade.

 

Ao se analisar os oito passos necessários para que mudanças importantes sejam incorporadas à cultura de uma organização[7], verifica-se que o Poder Judiciário está bem adiantado: mesmo com algumas resistências, os usuários do processo eletrônico têm percebido que, além de ser um caminho sem volta, a virtualização evita retrabalho redistribuindo os fluxos, pois automatiza atividades antes manuais, que demandavam maior tempo e maior número de pessoas.

 

É de se destacar que a virtualização dos processos estava em um segundo momento quando foi declarada a pandemia de Covid-19. Havia um descompasso entre a celeridade do processo virtual e a liturgia tradicional do processo, tanto civil como penal.

 

A citação e as intimações por mandado e por edital, por exemplo, são heranças das Ordenações, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. Passados tantos anos, as comunicações nos processos judiciais pouco mudaram. Todavia, a partir da segunda metade do século XX, o mundo sofreu tantas e tão grandes mudanças na área tecnológica que muitas formas de comunicação tornaram-se completamente obsoletas, inclusive as relativas ao processo.

 

A realidade do século XXI é totalmente diferente. Visitas, por exemplo, só são realizadas quando previamente ajustadas por contato escrito ou verbal. Sem que isso ocorra, são recebidas com estranheza. Igualmente em relação aos jornais. Assinaturas impressas dos principais jornais do país vêm caindo em curva vertiginosa, ao passo que as assinaturas digitais vêm aumentando, ainda que não no mesmo ritmo[8]:

 

A internet já é parte essencial e indissociável da vida moderna. Todos ¿ ou quase todos ¿ têm telefone celular com acesso a ela. Daí porque está evidente que os atos processuais e a sua comunicação devem valer-se da mesma praticidade e dinâmica das comunicações na sociedade contemporânea.

 

As citações e intimações realizadas presencialmente por oficial de justiça não se justificam mais, ao menos em grande parte dos casos. Em primeiro lugar, porque, não havendo distanciamento social, as pessoas não ficam em casa o dia todo. Tanto isso é verdade que, muitas vezes, para se agendar um serviço residencial (instalação de internet ou TV a cabo, por exemplo), os usuários têm de readequar suas agendas ou marcar a visita técnica no dia da presença de um trabalhador doméstico ou de algum representante.

 

De outro lado, o telefone fixo praticamente caiu em desuso, sucedido pelo telefone celular e, em relação a este, a comunicação oral tem sido substituída cada vez mais pelo aplicativo de mensagens WhatsApp, usado para praticamente tudo, desde comunicações sociais recreativas, para importantes decisões e comunicações no ambiente de trabalho, bem como agendamentos de serviços profissionais mais diversos.

 

Por isso, é necessário que o processo judicial acompanhe a evolução da sociedade e priorize sempre a comunicação efetiva. Os Tribunais têm aceitado cada vez mais intimações por meio de aplicativos de mensagens como o WhatsApp.

 

A visualização e mensagem de recebimento e confirmação pode ser fotografada e juntada aos autos virtuais. Até mesmo uma comunicação por mensagem de voz pode ser levada aos autos. Eventuais conversas telefônicas podem ser resumidas e certificadas por oficial de justiça ou qualquer outro servidor público, que são detentores de fé pública.

 

Atualmente, as centrais de mandados dividem o trabalho dos oficiais de justiça por CEP, ou seja, pela localização geográfica, sendo, por isso, limitada. Se as comunicações de atos processuais forem realizadas por meios mais modernos, com uso da tecnologia digital disponível, serão mais efetivas e ilimitadas, harmonizando-se com a realidade globalizada. As intimações eletrônicas tendem a ser mais utilizadas, pois é incomum hoje em dia que alguém não tenha endereço de correio eletrônico (e-mail).

 

A comunicação digital, por aplicativo, é tão mais fácil e efetiva que mesmo pessoas que moram fora do país podem ser facilmente intimadas para participar de audiências remotas, onde quer que estejam.

 

Uma experiência real nesse sentido aconteceu na 4ª Vara Federal Criminal de São Paulo, conforme imagens que seguem, onde se vê um diálogo real para intimação, com preservação dos dados de identificação da pessoa intimada[9]:

 

A partir desse exemplo concreto, observa-se que o ato de intimação para a audiência foi cumprido integralmente, com a plena ciência da pessoa intimada. O oficial de justiça não precisou se deslocar a lugar algum e, estando a pessoa em Portugal, foi evitada a expedição de carta rogatória, que é, certamente, o mais lento e burocrático dos meios de comunicação de atos processuais.

 

A mencionada Portaria Conjunta nº 10, de 2020, da Presidência do TRF-3 e da CORE prevê, em seu artigo 16, a possibilidade de intimação por meio eletrônico ou virtual, nos seguintes termos:

 

Art. 16. Quanto ao cumprimento de mandados pelos oficiais de justiça, deverá ser priorizada a intimação por meio eletrônico ou virtual, sendo admissível o cumprimento pessoal desde que não exista risco à saúde do servidor e não resulte em aglomeração de pessoas ou reuniões em ambientes fechados.

 

Além da proteção à saúde dos oficiais de justiça, priorizar as intimações por meio eletrônico ou virtual também se justifica porque a comunicação do ato judicial de forma eletrônica e virtual é tão efetiva quanto a pessoal e, em muitos casos, é mais rápida e a única forma de comunicação possível.

 

Admitir-se o contrário, ou seja, que se espere a volta total das atividades presenciais para que sejam cumpridos os mandados de citação e intimação, implicaria imenso prejuízo à atividade jurisdicional, considerando-se a elevada quantidade de mandados represados, aguardando cumprimento.

 

A Central Unificada de Mandados da Justiça Federal de Primeira Instância da cidade de São Paulo (CEUNI), por exemplo, já tem milhares de mandados represados, aguardando cumprimento após o final do período de distanciamento social.

 

Assim, essa estagnação gera um tal número de feitos paralisados que provavelmente alguns anos serão necessários para que a situação se normalize. Com efeito, os mandados represados bloqueiam o andamento dos processos, impedindo que o sistema judicial funcione, na medida em que o processo pressupõe a sucessão de atos e, se um determinado não pode ser realizado, a fase seguinte do processo também não poderá ser realizada. Em outras palavras, a paralisação causada pela pandemia é como uma pedra atirada num lago: as ondas decorrentes desse lançamento demonstram a imensa quantidade de consequências e o tempo a ser dispendido para o retorno ao status quo.

 

A título de exemplo, a 4ª Vara Federal Criminal de São Paulo realizou, no período de 13 de abril a 30 de junho de 2020, 42 audiências remotas. Descontando-se cinco dias úteis de feriado nesse período, o número é altamente satisfatório. Se essas audiências não tivessem sido realizadas, o prejuízo seria muito maior, com acúmulo de processos na pauta, implicando significativo atraso na sua solução. Para a realização dessas audiências, foi autorizada a intimação das partes por e-mail ou WhatsApp, sendo enviada ao intimando um passo a passo explicativo para o acesso no ambiente virtual de audiência. O passo a passo é um documento em formato pdf, com figuras, explicando literalmente cada passo a ser seguido para se entrar no ambiente virtual. Nos mandados, constava  e-mail da Vara para que, havendo dificuldade, fossem feitos com os servidores testes de acesso à sala de audiência virtual.

 

Com essa prática, também foi feito um tutorial para reconhecimento em presídios. Nesse caso, a defesa era avisada da necessidade de pedir o reconhecimento com pelo menos 48 de antecedência. Esse tutorial era enviado aos estabelecimentos prisionais para que, no dia e hora da audiência, já houvesse outras pessoas semelhantes perfiladas, nos termos do artigo 226 do CPP, seguindo-se um protocolo específico para a preservação da saúde dessas pessoas.

 

Em alguns casos, a dificuldade de pessoas com ferramentas eletrônicas, a qualidade dos equipamentos utilizados (celulares, tablets e computadores), bem como a velocidade da internet fizeram com que algumas audiências tenham sido mais demoradas do que o seriam se tivessem sido realizadas na forma presencial.

 

Essa demora, no entanto, só foi sentida pelo juiz, pelo servidor responsável pela audiência virtual e pelo membro do Ministério Público Federal (MPF) presente. Isso porque, antes do período da pandemia, deveria ser levado em consideração o tempo que uma testemunha dispenderia até que fosse ouvida pelo juiz. Com efeito, havia o seu deslocamento até o Fórum, o tempo de identificação e espera até ser chamada, tempo para o retorno até sua casa e o dia de trabalho não exercido e justificado. Os deslocamentos demandavam gastos com transporte, público ou particular.

 

No caso da audiência virtual (ou remota), a testemunha não precisa se deslocar do seu trabalho ou da sua residência para ir até o Fórum.

 

Enquanto não chega a sua vez de depor ela pode esperar fora do ambiente virtual. Ao finalizar o seu depoimento, deixa a sala virtual e sua obrigação está cumprida, ganhando o tempo que dispenderia para o seu retorno ao trabalho ou à sua casa.

 

A comunicação do réu com o seu defensor em nada mudou no ambiente virtual. Podem se comunicar antes e durante a audiência por meio de seus telefones celulares, caso em que a audiência poderá ser pausada ou não. A preservação da incomunicabilidade entre as testemunhas antes dos respectivos depoimentos também não é um problema. Sendo poucas as testemunhas para ser ouvidas, a rapidez na sequência entre as oitivas pode ser o suficiente.

 

Todavia, há notícia de audiência remota em que, para se assegurar a incomunicabilidade, a testemunha ainda não ouvida foi monitorada por servidor em vídeo, via WhatsApp.

 

Há que se ter em mente, por outro lado, que a maioria das salas de audiências e salas de esperas nos Fóruns não tem janela, apenas ventilação forçada ou ar condicionado.

 

Em razão disso, para a abertura gradual das atividades presenciais deve ser considerado que, em sucessivas audiências presenciais, pode ocorrer aglomeração nas salas de espera e nos corredores dos Fóruns, o que não é admissível antes que uma vacina segura contra o novo coronavírus seja desenvolvida. Por isso, a supracitada Portaria Conjunta nº 10 dispõe em seu artigo 8º:

 

Art. 8º. As audiências e sessões de julgamento deverão ser realizadas, preferencialmente, por meio virtual ou videoconferência, nos termos da Resolução 343, de 14 de abril de 2020, somente sendo realizadas por meio presencial, ou mistas, se justificadas por decisão judicial e não houver possibilidade de utilização dos sistemas atualmente disponíveis, observadas as condições necessárias de distanciamento social, limite máximo de pessoas no mesmo ambiente e atendidas as condições sanitárias recomendadas na Resolução 322 do CNJ.

 

As audiências virtuais são tão efetivas quanto as audiências presenciais e nada mudam na colheita da prova oral. Por isso, não implicam nulidade processual. Ao contrário, o mesmo cuidado que o juiz, presencialmente, deve ter para garantir ao imputado os seus direitos processuais, deve ter na audiência virtual. Não há diferença alguma.

 

Apesar das indiscutíveis vantagens, houve algumas impugnações à realização de audiências virtuais nesse período de distanciamento social. Ao indeferir pedido de liminar, o e. Desembargador Federal Paulo Fontes, da 5ª Turma do TRF-3, assim se pronunciou no HC nº 5010712-41.2020.4.03.0000:

 

É importante, ainda, ponderar que o cenário vigente é de incertezas, não sendo possível o adiamento dos atos processuais, considerando a existência de meios alternativos que possibilitem a participação das partes e de seus procuradores, de forma a assegurar a observância dos princípios inerentes ao devido processo legal.

 

Os pacientes poderão se entrevistar com seus advogados valendo-se dos meios virtuais atualmente existentes, de forma a garantir efetivamente o contato com os patronos.

 

E, ademais, não é preciso que todos os pacientes e advogados se reúnam em um mesmo ambiente para a realização da audiência, vez que, como indicado pela autoridade impetrada, faz-se necessário para ato tão somente um celular com acesso à internet.

 

Num momento tão difícil, em que os prognósticos sobre a evolução da epidemia são incertos, e diante do inusitado da situação, é louvável que o E. Conselho Nacional de Justiça tenha rapidamente autorizado a continuidade e o andamento dos feitos judiciais, com a adoção de mecanismos virtuais, como forma de auxiliar o Poder Judiciário e dar efetividade à sua missão.

 

V. Presos

 

Em relação a pessoas presas, a audiência virtual é até mais benéfica que a presencial. Nas audiências de custódia, por exemplo, dada a sua relevância, é muito melhor que sejam realizadas por videoconferência do que simplesmente dispensadas. Esse entendimento, aliás, segue a linha do enunciado aprovado na I Jornada de Direito e Processo Penal do CEJ acima transcrito.

 

O mesmo raciocínio vale para réus presos em processos criminais em andamento. Ao participar da audiência no estabelecimento prisional onde estiver recolhido, o preso não muda sua rotina, podendo fazer suas refeições normalmente e não perder dia de trabalho interno para remição.

 

Além disso, evitam-se os problemas decorrentes das transferências temporárias de presídio (ambientação e grupos internos).

 

Na Seção Judiciária de São Paulo, muitos presos estão recolhidos em estabelecimentos localizados no interior do Estado, de modo que, dependendo de onde estejam e aonde for a audiência presencial, precisam ser transferidos com antecedência, sendo transportados em veículos fechados, sem circulação de ar adequada, entrando em contato com diversas pessoas de fora do sistema prisional, o que aumenta o risco de contaminação pelo novo coronavírus. Além desse risco, o transporte dos presos é demorado e custoso para a logística da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) e o deslocamento em si é desgastante e sofrido para o preso.

 

Para ser levado ao Fórum, um preso entra em contato com diversas pessoas, de agentes penitenciários e policiais da escolta a servidores da Justiça Federal e outros presos. Neste período, essa exposição não é recomendável e deve ser evitada.

 

A Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo informa em boletins diários divulgados no seu sítio na internet (sap.sp.gov.br) a situação de Covid-19 nos presídios estaduais. No dia 11 de agosto, a informação é que havia 4.833 presos contaminados (numa população carcerária total de mais de 200 mil pessoas), com 20 óbitos, e 4.150 servidores da SAP contaminados[10].

 

Como há 176 unidades prisionais no Estado de São Paulo, o índice de contaminação é significativamente maior entre os servidores do que entre os presos. Notícia divulgada em 12 de agosto de 2020 informa que quase metade dos detentos do Centro de Detenção Provisória II de Pinheiros, na cidade de São Paulo, estava contaminada pelo novo coronavírus (46%), todos assintomáticos, e que 33 servidores também foram diagnosticados[11].

 

 

Em 8 de agosto de 2020, depois que foram retomadas algumas atividades fisicamente presenciais nos fóruns, o Brasil ultrapassou a marca de 100.000 mortes pela Covid-19. Por isso, enquanto não houver vacina para todos, é temerário o trânsito de presos e, portanto, pode-se concluir que, no atual período, a audiência virtual é mais adequada aos casos que envolvam pessoas presas.

 

Assim, repita-se, além de a audiência virtual não implicar qualquer prejuízo ao imputado, preso ou solto, ela é mais efetiva, rápida e econômica (tanto para o processo como para os recursos públicos), além de preservar a saúde e o tempo de todos os envolvidos. Além disso, dá plena efetividade ao devido processo legal, garantindo a ampla defesa e o contraditório.

 

V. Conclusões

 

A pandemia de Covid-19 modificou significativamente o modo de vida dos seres humanos. Das relações pessoais e escolares aos métodos de trabalho e à forma de consumo, tudo foi afetado. E essa mudança tende a ser permanente.

 

Nesse contexto, o sistema judicial, particularmente o criminal, precisa adaptar-se, pois é fundamental que não seja paralisado. Para isso, não é mais admissível que atos processuais sejam realizados com base em paradigmas firmados no início do século passado.

 

O mundo virtual está cada vez mais próximo do real e deve ser adaptado ao cotidiano do sistema de justiça criminal. Se antes da pandemia a ideia prevalecente partia da necessidade do contato pessoal entre os sujeitos atuantes no processo como a única realidade possível, aceitando a realização de atos à distância apenas de forma excepcional, a nova realidade impõe que se altere essa ideia.

 

O distanciamento social imposto pelas autoridades sanitárias encontra-se nas hipóteses previstas em lei para a adoção da videoconferência, com a qual não são incompatíveis os termos presença e comparecimento ao processo. Não havendo dúvidas sobre a ciência de um ato, não há razão para que não sejam admitidas citações e intimações por meio do uso dos recursos tecnológicos virtuais disponíveis.

 

Desde que observadas cautelas para a garantia da ampla defesa e do contraditório, o devido processo legal será respeitado e, portanto, nada impede a realização de audiências virtuais, com os participantes à distância, especialmente as pessoas presas, respeitando-se a sua dignidade.

 

A adoção da via virtual para citações, intimações, audiências e sessões de julgamento em órgãos colegiados não reduz essas garantias, tampouco deve ser vista como providência temporária e excepcional. Isso porque, ao contrário do que se possa imaginar, traz adensamento, onde nada fica perdido e tudo é reelaborado com mais coerência e multiplicidade[12].

 

Ao se admitir uma nova visão para as comunicações e os atos processuais totalmente adaptada ao mundo cada vez mais virtual, extrai-se o que há de melhor na criatividade humana. Evolui-se.

 

 

VII. Recomendações

 

Ante o exposto, propõe-se a aprovação da presente Nota Técnica, com posterior encaminhamento aos Centros Locais de Inteligência e ao Centro Nacional de Inteligência para conhecimento e divulgação de seu teor, adotando-se as seguintes recomendações:

 

i) Realização de citações e intimações em processos criminais com a utilização dos meios tecnológicos disponíveis, demonstrando-se a ciência inequívoca da parte a ser citada ou intimada;

ii) Realização de audiências criminais por videoconferência, observando-se a ampla defesa e o contraditório durante a oitiva de testemunhas e interrogatório dos réus;

iii) Participação dos réus presos em audiências criminais por videoconferência, garantindo-se sempre a presença do defensor e a comunicação entre ambos.

 

São Paulo, 24 de agosto de 2020.

 

Este texto não substitui o publicado no Diário Eletrônico

 

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